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Cristo apela ao coração humano

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No segundo ciclo de catequeses sobre a Teologia do Corpo, São João Paulo II fala sobre o projeto da redenção para a sexualidade humana. Enquanto o primeiro ciclo estava voltado para a Criação, o segundo olha mais atentamente para a Redenção.
Como ponto de partida para sua reflexão, o Papa recorre às palavras de Jesus: “Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Ora, eu vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5, 27-28). Com isso, Jesus traz um novo conceito de adultério. Não se trata mais, como no Antigo Testamento, de simplesmente deitar-se com a mulher do próximo. Agora, um novo ethos é posto, é instituída a ética do coração: não basta não praticar o ato externo pecaminoso; é preciso amar, verdadeiramente.
Antes de entender como a sexualidade humana é redimida, é preciso olhar como está o coração do homem após o pecado original. No diálogo entre a serpente e a mulher (cf. Gn 3, 1ss), que antecede a queda, Eva, ao invés de receber gratuitamente de Deus a participação em Sua vida, procura apropriar-se desse dom, tomá-lo para si. A Escritura diz que “a mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento. Colheu o fruto, comeu dele e o deu ao marido a seu lado, que também comeu” (Gn 3, 6). A expressão grega utilizada pelo Autor Sagrado neste trecho é a mesma que Ele usa para dizer que Cristo, “existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2, 6-7). A palavra “ἁρπαγμὸν” (lê-se: arpagmón) significa isto: uma realidade que foi tomada, arrebatada com violência, algo de que se tomou posse.
O projeto de Deus para a humanidade era que esta fosse Sua esposa. É por isto que o diálogo antes da queda acontece com a mulher: porque ela é, na relação conjugal, o polo passivo. Eva representa a humanidade passiva diante de Deus, a humanidade que recebe d’Ele a existência, a vida, a felicidade e todos os dons. Não se fala, por certo, de uma passividade inerte, mas de uma “receptividade de comunhão”. Como em uma valsa, em que a mulher é conduzida pelo homem, mas responde sensivelmente aos seus movimentos, a humanidade (na figura de Eva) foi chamada por Deus não só a receber o Seu amor, mas também a respondê-lo.
A resposta da humanidade, no entanto, é a ingratidão do pecado. O homem, enganado pela serpente e desacreditado do amor de Deus, passa a tratar Deus como um inimigo: “Quando ouviram o ruído do Senhor Deus, que passeava pelo jardim à brisa da tarde, o homem e a mulher esconderam-se do Senhor Deus no meio das árvores do jardim” (Gn 3, 8). A atitude de Adão e Eva de ocultar-se é a postura de quem vê aproximar-se seu inimigo. Além da desordem na relação com Deus, no entanto, o primeiro homem experimenta uma disfunção também na forma como se relaciona com sua companheira: ele quer tratá-la como objeto, quer usá-la para obter gratificação sexual. A mulher, em compensação, quer usar o homem para obter gratificação emocional.
Então, a sexualidade precisa ser redimida, principalmente na vida matrimonial. Não é porque uma pessoa se casa que ela está autorizada a usar seu cônjuge para sua satisfação pessoal. Por isso, é preciso um caminho, uma mudança: da situação de desordem causada pelo pecado original para a pureza de coração. Esse caminho é árduo, pois há uma malícia no homem contra a qual ele deve lutar incessantemente, até atingir a pureza de coração, sem a qual não veremos a Deus (cf. Mt 5, 8).
Nesse caminho, homens e mulheres devem tomar precauções mútuas. Estas devem cuidar-se com relação ao seu corpo. Por conta do pecado, as mulheres tendem a querer tornar-se objetos, em troca de compensação afetiva. Para mudar essa realidade, é preciso que ela cultive a virtude da modéstia, cobrindo o seu corpo com um véu, não por ele ser mau ou impuro, mas justamente por ele ser santo. Os homens, por sua vez, devem refrear a paixão desordenada – que não é instinto natural – de tratar sua companheira como objeto de seu domínio. Para isso, é importante que ele tenha sempre em mente a sua alma. Também é importante que o homem vigie o seu olhar. Pela culpa original, o homem é um voyeur, seu prazer está em ver. Não sem razão a pornografia, que é uma “escravidão do olhar”, é um pecado eminentemente masculino.
Por fim, tanto o homem quanto a mulher devem ser testemunhas do primado de Deus em suas vidas. A relação desordenada entre eles, baseada no modelo senhor e escravo, somente será superada quando existir para os dois um senhor de verdade, que é Deus.
Mas, como fazer isso, se o homem sente medo de Deus? “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1, 14). Com a sua vida, Cristo proclama:
“Não acreditas que Deus te ama? Permite-me então mostrar-te quanto Deus te ama. Não acreditas que Deus é dom? Isto é meu corpo, que é dado por vós (cf. Lc 22, 19). Pensas que Deus deseja privar-te da vida? Derramarei meu sangue até a última gota, a fim de que o sangue da minha vida te dê a vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Pensavas que Deus era um tirano, um senhor de escravos? Vou tomar a forma de escravo (cf. Fil 2, 7) e me colocar ‘sob teu domínio’ para mostrar-te que Deus não deseja ‘dominar-te’ (cf. Mt 20, 28). Pensavas que Deus te açoitaria, se lhes desses oportunidade? Quero deixar-me açoitar por ti, para mostrar-te que Deus não tem a menor intenção de te açoitar. Não vim para te condenar, mas para te salvar (cf. Jo 3, 17). Não vim para te escravizar, mas para te libertar (cf. Gl 5, 1). Deixa de lado a tua incredulidade. Arrepende-te e crê na boa nova (cf. Mc 1, 15).” [1]
Dentro da Redenção, está a chave para a liberdade e ela se chama “amor”. Enquanto o Antigo Testamento nos deu a Lei, Jesus Cristo trouxe-nos o amor, por meio do qual os mandamentos deixam de ser um fardo. Quem se entregou voluntariamente por amor não vê dificuldades em cumprir leis ordenando que não se ofenda o objeto amado, já que a última coisa que o ser amante quer é ver aquele que ama ofendido.
Se nós amarmos, se respondermos ao amor de Deus com generosidade, isso nos tornará livres, porque não somente estaremos cumprindo o Decálogo, mas também daremos um passo a mais, convertendo o nosso coração ao amor de Deus e tornando-nos livres. No amor, deixamos de ser escravos. E é para esta liberdade que Cristo nos libertou (cf. Gl 5, 1).

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