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Amar é tudo dar

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O conteúdo do quinto ciclo de catequeses de São João Paulo a respeito da Teologia do Corpo é bastante denso e aborda a sacramentalidade do Matrimônio.
A chave de leitura utilizada pelo Papa é a do personalismo, mas isso não significa que ele tenha rejeitado a tomista; ele apenas optou por uma que fosse mais fácil para o homem moderno compreender.
O personalismo é uma filosofia que enfatiza sobretudo a questão da relacionalidade. Portanto, dentro da perspectiva personalista, o corpo humano é apresentado por São João Paulo como um dom.
Monsenhor Pascal Ide, especialista em Teologia do Corpo, escreveu a obra “Dans il Theologie du Corp”, em que afirma que se fosse possível resumir a apresentação de João Paulo II em uma frase, esta seria: o dom é a verdade essencial do corpo.
Tal perspectiva não é nova, ela remete ao triângulo de São João da Cruz demonstrado na aula passada: o ser humano é dom porque dom é amor e amor é dom. De forma sintética, a visão de São João da cruz sobre esse tema está bem definida num escrito de uma outra discípula dele: Santa Terezinha do Menino Jesus e da Sagrada Face.
Em sua célebre poesia “Pourquoi je t´aime, ô Marie” (porque eu vos amo o Maria), ela profere a frase lapidar: “Aimer c´est tout donner et se donner soi-même” (amar é tudo dar e dar-se a si mesmo). Dar a si mesmo, não de forma limitada, com reservas, não! é dar tudo que se tem, inclusive a si mesmo. Isto expressa de forma extraordinária a verdade sobre corpo humano, é preciso haver a doação mútua. Justamente por isso o Papa fala sobre a linguagem do corpo.
Pois bem, o corpo fala e o que ele está dizendo? Para saber é preciso observar o Rito do Matrimônio e as palavras do consentimento matrimonial esclarecem o que é o matrimônio. Nas palavras do matrimônio eles se recebem, ou seja, há uma doação total entre o marido e a esposa.
O Código de Direito Canônico fala de um comunhão para toda a vida. Por isso, toda relação sexual deveria acontecer dentro dessa linguagem matrimonial para não ser um ato mentiroso. Ora, numa relação sexual um corpo diz ao outro: “sou todo seu”, no entanto, numa relação fora do matrimônio isso é uma mentira, pois, ao final, cada um vai para o seu canto. Na mesma linha, os anticoncepcionais impedem que o casal se una numa realidade eterna chamada filho. Como é possível haver verdade nisso?
A linguagem do corpo tem sua chave de leitura no sacramento do matrimônio enquanto tal. Dentro disso, João Paulo II parte para dois textos bíblicos fundamentais: um do livro de Oseias e outro de Tobias.
No Antigo Testamento, a função dos profetas era combater os falsos deuses, levando o povo a afastar-se da idolatria. Para tanto, utilizavam justamente a linguagem matrimonial. Em Oseias, capítulo 1 e seguintes, é apresentado o casamento do profeta com uma prostituta e a sua fidelidade a ela, mesmo ela continuando a exercer seu ofício. Pois bem, esta fidelidade remete à fidelidade de Deus. Ele é o esposo fiel de uma esposa prostituída, Israel.
Ora, a linguagem profética do Antigo Testamento será elevada a sacramento no Novo Testamento . A linguagem do corpo expressa no sacramento do matrimônio a fidelidade de Cristo à Igreja. Dentro disso, o Papa João Paulo apresente o segundo texto basilar que está no livro do Cântico dos Cânticos no capítulo 4, versículo 12: “és um jardim fechado, minha irmã e esposa. jardim fechado e fonte lacrada”.
Pode parecer estranho que um marido chame a esposa de irmã, no entanto, isso pode ser muito libertador para a mulher porque, de fato, ambos são iguais em dignidade. As mulheres se sentem bem como essa afirmação, mas os homens não se sentem à vontade, pois remete a algo incestuoso.
Contudo, segundo o santo, é justamente a ideia de irmandade que liberta, porque o homem enquanto tal, por causa do pecado original, tem a tendência de tratar a mulher não como irmã, mas como sendo um objeto. Por isso é compreensível que o homem sinta dificuldade em sentir luxúria pela sua irmã, mas o segredo está aqui, pois o desejo sexual sadio do esposo pela esposa não pode ser luxúria. Trata-se de doação mútua por isso a mulher não pode ser objeto. No jardim secreto da esposa o homem só pode entrar com consentimento dela. Ela deve se doar.
Isso contradiz frontalmente toda a visão feminista que olha para o matrimônio como sendo um campo de concentração. Não é. A realização do homem e da mulher está na mútua entrega um do outro: “Aimer c´est tout donner”, dar tudo e dar a si mesmo. A entrega é livre, por isso não é estupro. O ato conjugal faz com que a mulher, mesmo depois de casada, permaneça sempre um jardim fechado, hortus conclusus, pois permite o acesso na sua doação, na sua entrega, nada lhe é tirado, não é objeto de violência, mas permanece senhora de si para se doar.
O outro texto abordado por são João Paulo II está no livro de Tobias que mostra o quanto o matrimônio se torna uma linguagem também de vida e de morte. Referido livro apresenta uma realidade dramática de Sara, que já tinha tido vários maridos, os quais morriam na noite de núpcias pelas mãos do demônio Asmodeu. A situação era tão dramática que na noite do casamento, o sogro de Tobias, pai de Sara, abriu uma cova para enterrá-lo. 
Tobias sabia do perigo que o esperava e mesmo assim dispôs-se a entregar-se. Junto com Sara - “sua irmã” - levantam-se e fazem uma beracáao Senhor e em seguida uma recordação das benesses do Senhor. E Tobias diz não é por luxúria que ele se casa, mas por reta intenção. É isso que o livra da morte (do demônio). Ele se dispõe a morrer, como Cristo morreu pela Igreja.
Os outros tinham saído e fechado a porta do quarto. Tobias levantou-se e disse a Sara: "Levante-se, minha irmã! Vamos rezar e suplicar ao Senhor que nos conceda misericórdia e salvação". Então ela se levantou, e os dois começaram a rezar, pedindo que Deus os protegesse. Eles diziam: "Bendito sejas tu, Deus de nossos antepassados, e bendito seja o teu Nome para todo o sempre! Que o céu e tuas criaturas todas te bendigam para todo o sempre. Tu criaste Adão e, como ajuda e apoio, criaste Eva, sua mulher, e dos dois nasceu a raça humana. Tu mesmo disseste: 'Não é bom que o homem fique só. Façamos para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante'. Se eu me caso com minha prima, não é para satisfazer minha paixão. Eu me caso com reta intenção. Por favor, tem piedade de mim e dela e faze que juntos cheguemos à velhice". E os dois disseram juntos: "Amém! Amém!" Depois dormiram a noite inteira. (Tb 8, 4-10)
A linguagem do amor apresentada por João Paulo II em sua Teologia do Corpo, portanto, é a doação inteira e irrestrita de si mesmo em favor do outro. “Aimer c´est tout donner”.

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