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Terapia da gastrimargia

Por padrepauloricardo.org

Para manter a boa forma física, as pessoas estão sempre à procura de novas soluções: nos últimos anos, além de inventar dietas e experimentar tipos diferentes de comida, muitas delas têm recorrido às cirurgias de redução do estômago. Essas operações, que em si não são imorais, no entanto, não podem solucionar o problema da gula. A terapia da gastrimargia tem mais a ver com uma atitude espiritual em relação aos alimentos que com a espécie e a quantidade de comida que ingerimos. De fato, de nada adianta mudar o estômago se não se muda a alma.
Santo Tomás de Aquino, ao responder se a abstinência é uma virtude, esclarece que “a moderação no comer, na quantidade como na qualidade, cabe à medicina, no caso da saúde física, mas vista nas suas disposições interiores, em relação ao bem racional, ela pertence à abstinência” [1]. Santo Agostinho, por sua vez, ensina que “não importa, absolutamente, o que ou quanto de alimento alguém toma, se procede de acordo com as exigências das pessoas com quem convive e com as da própria pessoa, segundo as necessidades da saúde. O que importa é a facilidade e a serenidade com que sabe o homem privar-se da comida, quando for necessário ou conveniente” [2].
A terapia da gastrimargia visa purificar o relacionamento das pessoas com os alimentos, evitando a postura daqueles “cujo deus é o ventre” [3], na expressão do Apóstolo. Porque, no fundo, o pecado por trás da gula - como por trás de toda doença espiritual - é a idolatria. Eva comeu do fruto proibido seduzida pela mentira satânica: “Sereis como deuses” [4].
O monge russo Inácio Branchaninov, santo da Igreja Ortodoxa, preleciona que a ascese corporal é necessária para tornar a terra do coração apta para receber as sementes espirituais, que são as graças de Deus. Ele adverte também para duas atitudes igualmente perigosas: o abandono das práticas ascéticas e o seu excesso. A primeira transforma os homens em animais; a segunda, em demônios. Se o guloso está sempre insatisfeito e se comporta diante dos alimentos como um bicho, quem exagera na ascese, comportando-se como um faquir e achando-se melhor do que os outros, se envaidece e se iguala a Satanás, que caiu justamente por sua soberba.
Então, para curar o vício da gula, o jejum e a abstinência são realmente necessários, mas devem ser feitos com o objetivo certo, isto é, por amor a Deus. Passar fome não santifica ninguém. No entanto, quando se é capaz de fazer isso como resposta ao amor de Cristo, que passou quarenta dias no deserto por amor dos homens, então, tudo ganha sentido.
O Doutor Angélico, ao falar sobre o jejum, enumera os três fins principais dessa prática:
“Tem-se um ato por virtuoso quando ele se ordena pela razão a um bem honesto. Ora, isso acontece com o jejum, porque é praticado por três fins principais. Primeiro, para conter as concupiscências da carne. Por isso, diz o Apóstolo ‘nos jejuns, na castidade’, visto que pelo jejum se conserva a castidade; e Jerônimo diz que ‘sem Ceres e Baco, Vênus esfria’, isto é, na abstinência de comida e bebida, a luxúria arrefece.” [5]
Como se viu na aula sobre a antropologia tomista [6], a concupiscência é o apetite sensível ligado ao sustento do corpo. Por conta do pecado original, esse apetite é desordenado, tendendo a querer mais que aquilo que pede a necessidade física. Por isso, para conter a concupiscência, o melhor jejum não consiste tanto em passar fome, quanto em passar desejo. Quando alguém vai a uma nutricionista e se propõe a uma reeducação alimentar, por exemplo, isso pode muito bem ser um jejum, contanto que se acresça a essa prática uma atitude espiritual de amor a Deus.
A sabedoria dos Santos Padres também lembra que a alma fortalecida pelo jejum combate com muito mais força contra o pecado da luxúria.
“Em segundo lugar, jejua-se para elevar mais a livremente a alma à contemplação de realidades sublimes. Por isso, está no livro de Daniel que ele, após o jejum de três semanas, recebeu revelação de Deus.” [7]
Como dito na aula anterior, uma das filhas da gastrimargia é o “embotamento intelectual”, pelo qual a alma fica pesada, com grande dificuldade de elevar-se a Deus. Sem lutar contra a gula, pois, não será possível subir a escada da perfeição, que começa pela via purgativa, até chegar à plena união com Deus.
“Enfim, para satisfazer pelos nossos pecados. Daí estar escrito em Joel: ‘Voltai a mim de todo o vosso coração, com jejuns, prantos e lamentações’. Isso é o que Agostinho acentua num sermão: ‘O jejum purifica a alma, eleva os sentidos, submete a carne ao espírito, torna o coração contrito e humilhado, dissipa as névoas da concupiscência, extingue os ardores das paixões e acenda a verdadeira luz da castidade’. Portanto, o jejum é, evidentemente, ato de virtude.” [8]
Mas, por que é preciso oferecer a Deus satisfação pelos pecados? Porque, pelo pecado, instaura-se uma desordem no interior do homem: o seu corpo passa a mandar em sua alma, impedindo ou entravando nela a ação do Divino Hóspede. De fato, o Espírito Santo quer agir na alma e torná-la forte para “domar” o seu composto corpo e alma - o que São Paulo chama de “carne” -, assim como um cavaleiro é capaz de domar o seu cavalo.
Jejuar é, muito mais do que algumas práticas externas, uma atitude espiritual. Mais que abster-se de certos alimentos e comer com moderação, importa fazer tudo em contínua ação de graças a Deus, como exorta o Apóstolo: “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” [9]. Na religião cristã, há uma profunda ligação entre o alimento e a oração. Não sem razão o principal sacramento da Igreja é também um alimento espiritual: a Eucaristia.

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